Praia city. 9:00 da noite. Bam, bam, bam… A minha porta anda afónica depois de uma época de secura. A chuva fez-nos bioco e fugiu. Como sempre, a temperatura aumenta em cada conversão que se faz; fahrenheit, celsius… A Praia City está tórrida como o deserto de Atacama no Chile; está mais alta, depois do deslocamento da placa tectónica, transformando-se numa autêntica mirra mar. Olha, São Vicente escondida, com a monte cara de cara voltada para baixo. Será vergonha natural… a natureza também sente vergonha. Santo Antão um pouco mais alegre. Com o fenómeno Cordas do Sol a “iluminura” conquistou espírito dos nativos. Nas outras ilhas, a bruma seca sacode a sua irra.
O tempo era de despejo da vida. O espaço-tempo vencido por nova vaga de lamentos e tormentos. Choros urbanos, gritos que suportam lágrimas vendidas. A petrificação d’alma no ambiente urbano de uma instalação de canavial; corpos, tesos e tensos, bradam aos céus. “Deus nos acuda, dá-nos luz, água, pão e segurança”. O tempo urge de menções raivosas. Os políticos gravitam no saltimbanco da vergonha. Tornaram-se podres de ricos, sem criarem nada, sem defenderem causas da colectividade. Barricaram-se nos seus egoísmos e pimba! Podres de ricos! O país enfraquece e o povo enfurece.
O Poirot cabo-verdiano alegrou-me com a sua visita inesperada e desesperada. O móbil da visita era uma descoberta etnográfica de grande valor científico. Defendeu ele. De olhar intenso como António Lobo Antunes e Anthony Hopkins, mostrou-me traços por traços os sinais da descoberta e da denúncia. “sabes, estive a documentar os thugs da Cidade da Praia. Andei atrás deles como caçador de vampiros. Medi-os… cheirei-os… fiz de tudo. Sabes, é necessário fazer um trabalho de antropologia física. Coisa que muitos investigadores não conseguiram fazer…” perguntei-o, pacientemente, com o meu sorriso malandro de um badiu: que importância teria essa descoberta, meu caro? Ele, num traz, visou-me de cabeça aos pés. “olha, os thugs cheiram mal, com catinga… têm ramelas nos olhos, feios… são pobres e alguns filhos de ricos…” tendo em conta esses indicadores, truncados da realidade, perguntei ao Poirot: quando é que o senhor fez essas investigações? Havia energia eléctrica? Havia água nos chafarizes e nas torneiras? Não eram nos “folgosos” dias de apagões e de penúria de água? O senhor Poirot, de relance, virou para mim e disse: “realmente estava a ver se não eras thug, também. Estas a cheirar a cantiga e tens ramela nos olhos…” Mas Poirot, eu não sou feio? O Poirot saiu, batendo com a porta na minha cara. A porta, afónica, gritou de agonia.
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